A cena é clássica: o médico prescreve uma dose de 50 mg de um medicamento, mas na farmácia, você só encontra a caixa com comprimidos de 100 mg. A solução parece óbvia e econômica: “É só partir ao meio!”. Em outras situações, tentamos dividir a dose para uma criança ou até para um animal de estimação.
Este gesto, repetido diariamente em lares por todo o Brasil, parece inofensivo. Um simples corte para ajustar uma dose. No entanto, como farmacêutico, meu dever é acender um alerta. Por trás dessa simplicidade, pode haver um risco que compromete a eficácia do seu tratamento e, em alguns casos, até a sua segurança.
Mas por que algo tão trivial pode ser tão problemático? A resposta está na incrível tecnologia escondida dentro de cada pequeno comprimido. Vamos desvendar juntos os segredos que eles guardam.
1. A Ilusão da Dose Exata
O primeiro e mais óbvio problema é a precisão. Você pode pensar que, com uma faca afiada ou um cortador de comprimidos, a divisão será um perfeito 50/50. A realidade é bem diferente.
Estudos mostram que a divisão manual quase nunca resulta em duas metades iguais. É comum que uma parte fique com 40% da dose e a outra com 60%. O comprimido pode esfarelar, e parte do princípio ativo (a substância que realmente faz efeito) se perde no processo.
Pense em um bolo de chocolate com gotas: se você cortá-lo ao meio, é quase impossível garantir que cada metade terá o mesmo número de gotas de chocolate. Com o medicamento, o princípio ativo pode não estar distribuído de forma 100% homogênea, e o corte impreciso agrava essa questão.O Risco: Ao tomar a metade menor, você pode estar recebendo uma subdose, tornando o tratamento ineficaz. Ao tomar a maior, uma sobredose, que aumenta a chance de efeitos colaterais.

2. A Armadura Protetora: Quebrando o Revestimento
Muitos comprimidos não são “nus”. Eles vêm com um revestimento especial, uma espécie de armadura com funções muito específicas. Partir um comprimido revestido é como quebrar essa armadura, deixando seu conteúdo vulnerável. Existem dois tipos principais:
- Revestimento para Sabor e Proteção: Alguns fármacos têm um gosto extremamente amargo ou podem irritar a mucosa da boca e do esôfago. O revestimento funciona como uma capa para mascarar o sabor e permitir que o comprimido desça suavemente.
- Revestimento Entérico (de Proteção Gástrica): Esta é uma armadura ainda mais inteligente. Ela protege o fármaco do ambiente extremamente ácido do estômago, que poderia destruí-lo. O objetivo é que o comprimido passe intacto pelo estômago e se dissolva apenas no intestino, onde o ambiente é ideal para sua absorção.
- O Risco: Ao partir um comprimido com revestimento entérico, você expõe o princípio ativo ao ácido do estômago. O resultado? O medicamento pode ser inativado antes mesmo de ter a chance de ser absorvido. É como enviar um soldado para a batalha sem sua armadura – ele não chegará ao seu destino.

3. A Represa que se Rompe: O Perigo da Liberação Modificada
Aqui mora o maior perigo. Você já viu medicamentos com siglas como CR, SR, XR, CD, LA ao lado do nome? Elas indicam “Liberação Controlada”, “Sustentada” ou “Prolongada”. Estes não são comprimidos comuns.
Eles são projetados com uma tecnologia sofisticada que funciona como uma represa ou uma esponja, liberando o medicamento no corpo de forma lenta e gradual, ao longo de 12 ou 24 horas. Isso mantém um nível estável do fármaco no sangue, garantindo um efeito contínuo com apenas uma ou duas doses diárias.
- O Risco: Partir um desses comprimidos é como dinamitar a represa. Toda a dose, que deveria ser liberada em 24 horas, é despejada na sua corrente sanguínea de uma só vez. Isso causa um pico de sobredose tóxica, com efeitos colaterais potencialmente graves, seguido por horas sem qualquer medicação no corpo, deixando você desprotegido.
Afinal, Quando EU POSSO Partir um Comprimido?
A boa notícia é que alguns comprimidos são, sim, feitos para serem partidos. Para saber, siga estas três regras de ouro:
- Procure o Sulco: A grande maioria dos comprimidos que podem ser partidos possui um sulco – uma pequena linha que os divide ao meio. Essa linha é a indicação visual do fabricante de que a divisão é segura e prevista.
- Leia a Bula: Na seção “Como devo usar este medicamento?”, a bula informará claramente se o comprimido pode ou não ser partido, mastigado ou esmagado. Se ela disser “não parta”, obedeça.
- PERGUNTE AO SEU FARMACÊUTICO: Esta é a regra mais importante. Na dúvida, NUNCA presuma. Leve a caixa do medicamento ao seu farmacêutico de confiança e pergunte. Ele é o profissional capacitado para lhe dar essa orientação com 100% de segurança.
Conclusão: Um Gesto que Pede Cuidado
Aquele pequeno corte pode parecer uma economia de tempo ou uma solução prática, mas, como vimos, ele pode custar a eficácia do seu tratamento ou, pior, a sua segurança. Sua saúde não merece ser dividida ao meio ou deixada ao acaso. Respeite a tecnologia e a ciência por trás de cada medicamento. Antes de pegar a faca, verifique o sulco, leia a bula e, acima de tudo, converse com seu farmacêutico. Cuidar da saúde começa com gestos simples e bem-informados.
